Impactos econômicos por vezes têm disputado a atenção política (especialmente no Brasil) na discussão sobre efeitos imediatos e futuros da pandemia do novo coronavírus. Discute-se a recessão causada pelo confinamento, o empobrecimento da população e até o risco de convulsão social por esses motivos. Para o futuro, fala-se sobre a possível recuperação das finanças, os efeitos políticos da crise retração e, um dos pontos mais interessantes, como isso pode afetar a desigualdade no mundo e no Brasil.

Um dos principais estudiosos do assunto é o historiador Walter Scheidel, professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos — que entrevistei para a BBC News Brasil no início de abril, e que também falou com a Folha nesta semana.
Folha – Covid-19 aumentará desigualdade em hora muito infeliz para Brasil, diz historiador
Ele é autor do livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, obra que traça a história da desigualdade social no mundo e analisa as rupturas levaram a sua diminuição. O livro vai ser lançado agora no Brasil pela editora Zahar com o título “Violência e a história da desigualdade”.
A avaliação dele é bem interessante. Por um lado, pandemias ao longo da história tiveram o poder de reduzir desigualdades, mas a Covid-19 não deve ter este efeito imediatamente. Por outro lado, a crise gerada pela propagação do vírus pode mudar o tom da política nacional, criando uma postura mais “progressista” e de esquerda –o oposto do que há hoje em países como o Brasil e os EUA.
“Crises muito sérias podem afetar preferências políticas e escolhas políticas. Então, se este evento for severo o suficiente, ele pode alterar as preferências do eleitorado de forma que se mova para uma defesa de um estado de bem-estar social mais forte, impostos mais altos para pagar pelos déficits causados por pacotes de estímulo, mais assistência médica, maior proteção aos trabalhadores”, avaliou na conversa comigo.

Na entrevista publicada agora pela Folha, entretanto, ele é mais pessimista ao analisar a situação do Brasil, e indica que o estrago causado pela pandemia é tão grave que talvez uma guinada para uma visão mais social da economia não seja suficiente para evitar um aumento da desigualdade no país.
“O momento para o Brasil e para a América Latina é muito infeliz. A primeira década deste século foi muito positiva, e não apenas para o Brasil. Houve um boom econômico, mudanças políticas que levaram a uma maior distribuição de renda e políticas para a educação. Muitas coisas juntas ocorreram no momento de um boom de demanda da China por commodities.
Isso ajudou a reduzir as desigualdades, mas os problemas começaram a aparecer cedo na década atual, e a tendência de equalização social parou repentinamente. A partir daí houve uma mudança política radical que não chega a surpreender se levarmos em conta o quão profundamente arraigado está o conservadorismo nessas sociedades. Isso talvez fosse até inevitável. E tudo talvez fique ainda pior com a crise em andamento agora.
Eu ficaria bastante pessimista em relação às perspectivas de o Brasil conseguir retomar uma trajetória de diminuição de suas desigualdades como o fez há 10 ou 15 anos. A não ser que, como disse, as coisas fiquem tão ruins que a pressão para mudanças seja muito grande. E apenas se livrar do atual governo talvez não seja o suficiente. Teria de haver um descontentamento muito grande entre os pobres e mesmo na classe média para que algo assim pudesse ocorrer.”
————–
Abaixo, selecionei alguns trechos da entrevista publicada na BBC News Brasil, em que Scheidel fala sobre possíveis impactos
BBC News Brasil – O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, está indo na contramão de outros políticos do mundo e rejeitando políticas duras de confinamento por conta dos efeitos negativos na economia. Acha que este comportamento pode ter relação com uma tentativa de evitar este tipo de impacto da pandemia na política?
Walter Scheidel – Acho que sim. Vemos isso todas as vezes ao longo da história. A elite entrincheirada não tem interesse nesse tipo de mudança, então sempre há resistência a mudanças trazidas por reformas progressistas. O resultado é determinado em ampla medida por quem vence, por que lado dessa disputa se coloca com mais força. Houve pessoas na Idade Média que tentaram fazer os pobres trabalharem pelos mesmos salários que recebiam antes, apesar de haver apenas metade dos trabalhadores ativos de antes, numa tentativa de coagir as pessoas a continuar no mesmo status quo, o que não era possível. Em outros momentos, isso foi possível, como em situações do feudalismo.
Há diferentes tipos de resposta para este tipo de crise que enfrentamos agora, e vai depender muito do tipo de país em que se vive. É possível que as forças reacionárias do status quo sejam tão fortes que, ao fim da crise, a vida volte ao mesmo sistema que havia antes, mas com mais polarização e desigualdade, o que pode criar instabilidade no longo prazo. Por outro lado, podemos pensar que o outro lado sai com vantagem, e vemos uma mudança de trajetória. Isso está em aberto atualmente, especialmente em países como os Estados Unidos e o Brasil, onde já há muita desigualdade e os interesses entrincheirados são muito poderosos.
Se estivéssemos falando da Suécia, a diferença não seria tão grande, já que já existe um estado de bem-estar social, que deve dar ainda mais apoio à população. Mas em países como os nossos, está tudo muito em aberto e não temos como saber que lado vai vencer. Ainda assim, acredito que as forças progressistas agora têm uma chance maior de serem bem-sucedidas enquanto a crise piora, pois se torna mais fácil eles apresentarem seus argumentos.
BBC News Brasil – O senhor fala sobre os impactos de pandemias em desigualdades, e falou sobre as mudanças de prioridades por conta da propagação do coronavírus. Aqui no Brasil há uma expectativa de que a população mais pobre sofra mais com os efeitos da doença, por conta de uma desigualdade já muito grande. Acha que esse tipo de situação pode ter impactos políticos e econômicos no país?
Walter Scheidel – No curto prazo, sem dúvida isso vai aumentar a polarização, pois vai fazer com que as pessoas se sintam ainda mais alienadas por verem que não são parte do sistema. Se nada mudar, isso pode desestabilizar a sociedade além do que já vemos no Brasil atualmente. Isso ainda pode ser usado por políticos para acelerar mudanças para um lado ou o outro do espectro político dessa polarização. Mas acho que há um potencial para um reforço a políticas progressistas, muito mais do que havia um mês atrás.
BBC Brasil News – Ainda assim, seu livro menciona a América Latina do início do século 21 como um dos principais candidatos para uma equalização sem violência. Olhando para esse movimento, quão importante acha que ele foi e por que acha que ele não foi mais bem sucedido no sentido de diminuir as desigualdades?
Walter Scheidel – É uma questão muito difícil, e tem muita gente tentando entender esse movimento. Aparentemente, foi um progresso muito limitado a um período de cerca de uma década em que o progresso foi alcançado por uma combinação rara de circunstâncias: havia mudança política, havia o resultado de reformas aprovadas nos anos 1990, havia demanda por commodities na China e em outras economias emergentes, havia o resultado de investimentos em educação feitos nos anos 1990. Foi a culminação de fatores que levaram a esse resultado, mas não está claro o quanto esses resultados eram sustentáveis. Além disso, sempre houve forças de reação presentes, que esperavam suas chances de se impor contra esses movimentos, o que vemos claramente no Brasil atualmente, mas também em outros países. Houve uma reação contra isso. Parece que as condições que favoreciam o movimento por menor desigualdade se enfraqueceram, e as forças de reação conseguiram ganhar mais força para lutar contra ela.