David Graber em entrevista de 2011

O antropólogo, economista e ativista anarquista David Graeber morreu nesta semana. Autor de livros como “Bullshit Jobs”, ele foi participante ativo do movimento antiglobalização na virada do milênio e um dos idealizadores do Occupy Wall Street.

Entrevistei Graeber antes de ele ganhar destaque por sua mobilização política, em 2011. Falamos sobre o então recém-lançado livro “Dívida”, para uma reportagem do G1 (parte de uma série sobre pessoas endividadas no Brasil”.

O link para a entrevista e alguns dos trechos mais interessantes seguem abaixo:

Dívidas surgiram antes do dinheiro, diz antropólogo americano

“Na história da humanidade, a maior parte das pessoas foi endividada, pelo menos em algum ponto de sua vida. O aumento do endividamento é uma repetição da história”

“O dinheiro não surgiu na forma impessoal e fria, como metal e com valor intrínseco. Ele originalmente aparece como forma de medida, uma abstração, mas também como uma relação de dívida e obrigação entre seres humanos”

“Na verdade, tudo o que consideramos comportamento natural de mercado é um efeito colateral de guerras e confrontos entre as pessoas. Isso gerou a escravidão e a ideia de dívida social entre vencedores e perdedores. Os mercados de dinheiro sempre tiveram relação com campanhas militares. As pessoas preferem não olhar isso de forma direta, mas é uma parte essencial do capitalismo”

“Filosoficamente, pode-se dizer que não há muita diferença entre ‘se alugar’ como trabalhador ou ‘se vender’ como escravo”.

Neste sentido, pode-se dizer que as pessoas são escravas no mundo atual. “Isso, sim, pode ser eliminado. O sistema em que vivemos é que precisa ser moldado por instituições que impeçam que a maior parte das pessoas viva como se fossem escravas de tantas obrigações sociais.”

“Na Guerra Fria, falava-se em um conflito entre comunismo e capitalismo, mas o comunismo que existiu nunca se afastou do dinheiro, dos salários, e por isso hoje sabemos que nunca houve o comunismo de verdade, mas um capitalismo de estado.”

“O problema é que não há muita saída. Quando as pessoas têm poder sobre você, o correto seria questionar, tentar descobrir por que existe essa dívida, mas no momento em que isso acontece, já se está usando a linguagem da dívida, e fica difícil escapar disso. Estamos presos a isso milhares de anos mais tarde. Desde a religião, em que devemos nossa vida a Deus, até o pagamento de impostos ao Estado.”

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Pandemia, saúde pública e desigualdade

Entrevista realizada para o Canal Um Brasil com Gonzalo Vecina Neto. Médico sanitarista, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e colunista do jornal o Estado de São Paulo.

Em meio à pandemia do novo coronavírus, enquanto o Brasil se consolida como epicentro da emergência global, o sistema único de saúde ganha uma nova relevância para o país, reforçando a importância do Estado na gestão da saúde e do bem estar social. E é disso que trata esta edição do Um Brasil.

Gonzalo Vecina Neto é professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da fundação getulio vargas. Também foi secretário municipal da Saúde na capital paulista.

Pandemia e desigualdade: ‘Se livrar do governo talvez não seja suficiente’

Impactos econômicos por vezes têm disputado a atenção política (especialmente no Brasil) na discussão sobre efeitos imediatos e futuros da pandemia do novo coronavírus. Discute-se a recessão causada pelo confinamento, o empobrecimento da população e até o risco de convulsão social por esses motivos. Para o futuro, fala-se sobre a possível recuperação das finanças, os efeitos políticos da crise retração e, um dos pontos mais interessantes, como isso pode afetar a desigualdade no mundo e no Brasil.

Um dos principais estudiosos do assunto é o historiador Walter Scheidel, professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos — que entrevistei para a BBC News Brasil no início de abril, e que também falou com a Folha nesta semana.

BBC Brasil – Coronavírus: Autor americano aponta potencial da covid-19 para reduzir desigualdade no mundo

Folha – Covid-19 aumentará desigualdade em hora muito infeliz para Brasil, diz historiador

Ele é autor do livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, obra que traça a história da desigualdade social no mundo e analisa as rupturas levaram a sua diminuição. O livro vai ser lançado agora no Brasil pela editora Zahar com o título “Violência e a história da desigualdade”.

A avaliação dele é bem interessante. Por um lado, pandemias ao longo da história tiveram o poder de reduzir desigualdades, mas a Covid-19 não deve ter este efeito imediatamente. Por outro lado, a crise gerada pela propagação do vírus pode mudar o tom da política nacional, criando uma postura mais “progressista” e de esquerda –o oposto do que há hoje em países como o Brasil e os EUA.

Crises muito sérias podem afetar preferências políticas e escolhas políticas. Então, se este evento for severo o suficiente, ele pode alterar as preferências do eleitorado de forma que se mova para uma defesa de um estado de bem-estar social mais forte, impostos mais altos para pagar pelos déficits causados por pacotes de estímulo, mais assistência médica, maior proteção aos trabalhadores”, avaliou na conversa comigo.

Na entrevista publicada agora pela Folha, entretanto, ele é mais pessimista ao analisar a situação do Brasil, e indica que o estrago causado pela pandemia é tão grave que talvez uma guinada para uma visão mais social da economia não seja suficiente para evitar um aumento da desigualdade no país.

O momento para o Brasil e para a América Latina é muito infeliz. A primeira década deste século foi muito positiva, e não apenas para o Brasil. Houve um boom econômico, mudanças políticas que levaram a uma maior distribuição de renda e políticas para a educação. Muitas coisas juntas ocorreram no momento de um boom de demanda da China por commodities.

Isso ajudou a reduzir as desigualdades, mas os problemas começaram a aparecer cedo na década atual, e a tendência de equalização social parou repentinamente. A partir daí houve uma mudança política radical que não chega a surpreender se levarmos em conta o quão profundamente arraigado está o conservadorismo nessas sociedades. Isso talvez fosse até inevitável. E tudo talvez fique ainda pior com a crise em andamento agora.

Eu ficaria bastante pessimista em relação às perspectivas de o Brasil conseguir retomar uma trajetória de diminuição de suas desigualdades como o fez há 10 ou 15 anos. A não ser que, como disse, as coisas fiquem tão ruins que a pressão para mudanças seja muito grande. E apenas se livrar do atual governo talvez não seja o suficiente. Teria de haver um descontentamento muito grande entre os pobres e mesmo na classe média para que algo assim pudesse ocorrer.”

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Abaixo, selecionei alguns trechos da entrevista publicada na BBC News Brasil, em que Scheidel fala sobre possíveis impactos

BBC News Brasil – O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, está indo na contramão de outros políticos do mundo e rejeitando políticas duras de confinamento por conta dos efeitos negativos na economia. Acha que este comportamento pode ter relação com uma tentativa de evitar este tipo de impacto da pandemia na política?

Walter Scheidel – Acho que sim. Vemos isso todas as vezes ao longo da história. A elite entrincheirada não tem interesse nesse tipo de mudança, então sempre há resistência a mudanças trazidas por reformas progressistas. O resultado é determinado em ampla medida por quem vence, por que lado dessa disputa se coloca com mais força. Houve pessoas na Idade Média que tentaram fazer os pobres trabalharem pelos mesmos salários que recebiam antes, apesar de haver apenas metade dos trabalhadores ativos de antes, numa tentativa de coagir as pessoas a continuar no mesmo status quo, o que não era possível. Em outros momentos, isso foi possível, como em situações do feudalismo.

Há diferentes tipos de resposta para este tipo de crise que enfrentamos agora, e vai depender muito do tipo de país em que se vive. É possível que as forças reacionárias do status quo sejam tão fortes que, ao fim da crise, a vida volte ao mesmo sistema que havia antes, mas com mais polarização e desigualdade, o que pode criar instabilidade no longo prazo. Por outro lado, podemos pensar que o outro lado sai com vantagem, e vemos uma mudança de trajetória. Isso está em aberto atualmente, especialmente em países como os Estados Unidos e o Brasil, onde já há muita desigualdade e os interesses entrincheirados são muito poderosos.

Se estivéssemos falando da Suécia, a diferença não seria tão grande, já que já existe um estado de bem-estar social, que deve dar ainda mais apoio à população. Mas em países como os nossos, está tudo muito em aberto e não temos como saber que lado vai vencer. Ainda assim, acredito que as forças progressistas agora têm uma chance maior de serem bem-sucedidas enquanto a crise piora, pois se torna mais fácil eles apresentarem seus argumentos.

BBC News Brasil – O senhor fala sobre os impactos de pandemias em desigualdades, e falou sobre as mudanças de prioridades por conta da propagação do coronavírus. Aqui no Brasil há uma expectativa de que a população mais pobre sofra mais com os efeitos da doença, por conta de uma desigualdade já muito grande. Acha que esse tipo de situação pode ter impactos políticos e econômicos no país?

Walter Scheidel – No curto prazo, sem dúvida isso vai aumentar a polarização, pois vai fazer com que as pessoas se sintam ainda mais alienadas por verem que não são parte do sistema. Se nada mudar, isso pode desestabilizar a sociedade além do que já vemos no Brasil atualmente. Isso ainda pode ser usado por políticos para acelerar mudanças para um lado ou o outro do espectro político dessa polarização. Mas acho que há um potencial para um reforço a políticas progressistas, muito mais do que havia um mês atrás.

BBC Brasil News – Ainda assim, seu livro menciona a América Latina do início do século 21 como um dos principais candidatos para uma equalização sem violência. Olhando para esse movimento, quão importante acha que ele foi e por que acha que ele não foi mais bem sucedido no sentido de diminuir as desigualdades?

Walter Scheidel – É uma questão muito difícil, e tem muita gente tentando entender esse movimento. Aparentemente, foi um progresso muito limitado a um período de cerca de uma década em que o progresso foi alcançado por uma combinação rara de circunstâncias: havia mudança política, havia o resultado de reformas aprovadas nos anos 1990, havia demanda por commodities na China e em outras economias emergentes, havia o resultado de investimentos em educação feitos nos anos 1990. Foi a culminação de fatores que levaram a esse resultado, mas não está claro o quanto esses resultados eram sustentáveis. Além disso, sempre houve forças de reação presentes, que esperavam suas chances de se impor contra esses movimentos, o que vemos claramente no Brasil atualmente, mas também em outros países. Houve uma reação contra isso. Parece que as condições que favoreciam o movimento por menor desigualdade se enfraqueceram, e as forças de reação conseguiram ganhar mais força para lutar contra ela.

Um ‘cheerleader’ do Brasil

No meio de uma pandemia, com políticas de confinamento nas principais cidades do país, fuga de capital internacional, desvalorização cambial e uma perspectiva de aumento da mortalidade pelo Covid-19 e queda cada vez maior na economia, o Brasil foi listado como uma das principais escolhas para investimentos do gestor americano Mark Mobius.

Apesar do pessimismo de analistas de mercado no Brasil, em entrevista à agência de notícias Reuters, Mobius disse que o Brasil faz parte de um grupo de mercados “em plena recuperação”, depois de atingir o fundo do poço.

Além do Brasil, Mobius recomenda investimentos na Índia, na Coreia do Sul e em Taiwan. Segundo ele, investimentos em empresas voltadas ao consumo, empresas de internet e software e educação à distância são a grande promessa no Brasil.

Podia ser um motivo para o Brasil festejar uma melhora em sua reputação internacional, não fosse a fonte de tanto otimismo.

O gestor americano aparece há anos na imprensa internacional como um dos maiores impulsionadores de investimentos no Brasil, quase sempre prevendo uma rápida retomada da economia do país –o que não acontece há quase uma década. Ele é quase um “cheerleader” de investimentos no Brasil mesmo em meio a grandes crises.

Conhecido como um veterano dos investimentos internacionais, chamado de “guru dos emergentes”, Mobius atuou até 2018 na Franklin Templeton, e agora trabalha na firma que leva seu nome: Mobius Capital Partners, que administra US$ 130 milhões, segundo a Reuters.

Um dos pontos centrais da avaliação dele ao longo dos últimos anos é que o Brasil já atingiu um patamar negativo, e que vai se recuperar rapidamente.

A ideia de que o Brasil havia chegado ao fundo do poço já aparecia na defesa que Mobius faz dos investimentos no Brasil cinco anos atrás.

Em 2015, quando ainda começava a maior recessão já registrada no país, Mobius deu uma entrevista ao Wall Street Journal alegando que aquela era a “hora de olhar para o Brasil”

Alguns meses depois, em 2016, quando cresciam as discussões sobre um possível impeachment de Dilma Rousseff, Mobius diminuiu um pouco o tom em uma entrevista à Folha de S.Paulo. Ele apontou a possibilidade de mudança da política econômica se houvesse uma mudança no governo, mas dizia exagerado o otimismo do mercado internacional com a saída do PT do poder.

Pouco depois do impeachment, Mobius voltou a falar sobre investimentos no Brasil. Em entrevista à Forbes, ele assumiu novamente o tom otimista em relação ao governo de Temer. Além de acreditar na valorização dos investimentos, ele defendeu à época a manutenção de programas sociais e da Lava Jato sob o novo governo.

Em fevereiro de 2017, uma nova avaliação otimista. Em palestra no país (com repercussão no Wall Street Journal), Mobius previu uma “recuperação rápida” do Brasil, com possível crescimento de 5% da economia do país em 2018 (o crescimento real acabou sendo de pouco mais de 1%).

Alguns meses depois, em meio a uma onda de otimismo do mercado internacional com o governo Temer, Mobius voltou a falar à Forbes. Ele alegou que o Brasil estava “no caminho para o crescimento”.

E ainda em 2017, Mobius deu uma nova entrevista à Reuters defendendo a Lava Jato e prevendo o crescimento de até 50% dos investimentos no Brasil.

Uma das poucas vezes em que Mobius se mostrou menos otimista em relação ao Brasil foi pouco antes da eleição de 2018, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda aparecia à frente das pesquisas de intenção de voto. Na época, ele se dizia preocupado com a possível redução do ritmo de reformas econômicas iniciadas por Michel Temer.

Mas ele logo voltou ao otimismo com a eleição de Jair Bolsonaro. Em uma entrevista à agência Bloomberg em 2019, Mobius defendeu que o novo líder do país seria um ótimo presidente. Ele alegou que aumentaria seus investimentos no país. “A direção do Brasil é muito boa”, disse.

Os motivos para o otimismo de Mobius em relação ao Brasil em momentos de crise não são exatamente um segredo. Na entrevista à Folha em 2016, e em outras falas públicas, ele explicou que os investimentos dele rendem mais em situações de caos e incerteza.

“A melhor estratégia de investimento é comprar quando as condições são incertas e negativas, e quando os demais estão segurando e com medo de comprar. Por essa razão, faz mais sentido esperar por momentos de reversão desse otimismo todo. Se olhar as perspectivas de longo prazo, digamos de três para cinco anos, então essa volatilidade de curto prazo deixa de ser tão importante”, disse à Folha.

O problema é acreditar nesse otimismo dele em meio a crises e achar que isso indica uma possível recuperação real da economia brasileira. De fato pode até haver oportunidades para investimentos na crise atual, mas a pandemia deve criar uma crise econômica global, e os investidores estrangeiros parecem não sentir tanta atração pelo Brasil de hoje. Mais do que isso, a crise para a maioria da população brasileira ainda não tem uma previsão de acabar, e pode marcar profundamente o país.