Os anos loucos do Brasil e os danos à imagem do país

A história do Brasil vai registrar o momento atual da política do país sob Jair Bolsonaro em meio à pandemia como “os anos loucos”, um período de “insanidade total”. 

Isso é muito ruim para a projeção internacional e está diretamente relacionado com o momento em que a imagem do país no exterior parece viver uma das suas piores crises da história. Por outro lado, esta falta de sanidade ocorre ao mesmo tempo em que o mundo todo está parecendo viver um surto, então os problemas do Brasil podem ser superados com relativa facilidade.

A avaliação resume uma conversa que tive recentemente com o pesquisador Sean Burges, professor na Carleton University, no Canadá e autor do livro “Brazil in the world: The international relations of a South American giant” (Brasil no mundo: As relações internacionais de um gigante sul-americano, Manchester University Press).  A obra trata dos desafios de diplomacia do Brasil no século 21, quando o país conseguiu expandir sua ação no resto do mundo, mas acabou perdendo força por conta das crises política e econômica.

Acho que quando olharmos para trás daqui a 50 anos, este período vai ser visto como os anos loucos. Quatro anos de insanidade total”, disse.

“De certa forma, é um bom momento para estar vivendo essa loucura no Brasil, pois nada está acontecendo atualmente no resto do mundo. A crise do coronavírus pode ajudar o Brasil nisso, pois nada mais acontece. O máximo que podemos ver é que o Brasil pode perder oportunidades, mas não um dano real ao país”, complementou. 

Por outro lado, é a reação à pandemia que está tendo um impacto mais forte sobre a reputação do governo brasileiro –mais do que do país em si.

Segundo o pesquisador, mais pessoas podem estar vendo o Brasil como o epicentro da doença, e o país pode ter um destaque negativo por isso, mas são poucas as pessoas no resto do mundo que realmente prestam atenção ao Brasil, e elas estão vendo o que está acontecendo na política do país.

O mundo vê Bolsonaro como “uma ameaça à saúde pública”, explicou.

“Há um conhecimento de que o que está acontecendo no Brasil é o resultado deliberado de decisões políticas surpreendentemente horríveis tomadas pelo presidente. O Brasil não é visto exatamente como destinado a ser uma zona de desastre, mas mais como uma terra de oportunidades que não está funcionando muito bem. Ainda há interesse, mas as pessoas pensam que neste momento é melhor evitar o país. Até o Paraguai fechou as fronteiras. Isso diz muito. As pessoas não vão querer ir ao país porque nada foi feito para controlar o coronavírus. Isso vai ter mais impacto do que qualquer coisa que tenha sido feita no front diplomático”, disse.

Burges comentou a carta escrita pelos ex-chanceleres, que acusaram o Ministério das Relações Exteriores de estar agindo contra a Constituição. Na avaliação dele, o dano à imagem do Brasil não deve ser permanente.

“Isso que leva os ex-chanceleres a falar que o governo está destruindo a posição global do Brasil. Não sei se esse é exatamente o caso. Não acho que vai precisar de muito esforço para reparar isso. Pois é simples para os diplomatas e para o próximo ministro das Relações Exteriores, considerando que seja alguém diferente. Ele só precisa dizer: ‘Vejam, o mundo todo ficou louco por cerca de quatro ou cinco anos, e esse foi o nosso caso. Mas estamos de volta’. Porque todas as pessoas continuam lá. As pessoas que podem corrigir os rumos e construir coalizões, que podem se engajar com o mundo, elas continuam lá”, disse. 

Um dos motivos para essa avaliação é a qualidade do serviço diplomático do Brasil, um dos melhores do mundo, segundo analistas estrangeiros. Mesmo no caso de políticas que vão contra a tradição do Itamaraty Burges vê sinal de um trabalho profissional e sério.

“Vemos os diplomatas brasileiros fazendo coisas que nos deixam horrorizados, ou agindo de forma estranha, mas isso é um testemunho do profissionalismo deles. Eles sabem que é loucura, mas a direção política do Ministério de Relações Exteriores, que responde ao povo, ordenou que façam isso. ‘E essa é a nossa política, e o Congresso não se impôs, então vamos fazer o que nos mandaram fazer’. Isso diz muito sobre a integridade profissional dos diplomatas. Pois os diplomatas não devem improvisar suas políticas externas. Aí é que as coisas ficam assustadoras. Eles devem seguir direções. E é isso que eles estão fazendo.”

Burges também rejeita a ideia de que haja uma mudança radical no trabalho do Itamaraty sob Ernesto Araújo. Para ele, a inserção internacional do Brasil historicamente seguiu um modelo em que ou se aproxima dos EUA, ou tenta ser um líder do terceiro mundo, ou tenta trabalhar com instituições multilaterais. E Araújo escolheu se reaproximar dos EUA. 

“Quando olhamos  para a posição do Brasil, ele precisa encontrar uma forma de inserir algo para defender seus interesses internacionalmente e manter sua autonomia. Não acho que ele está abandonando este tema de forma geral, mas ele escolheu uma estratégia para isso que é maluca. Sua ideia de guerras civilizatórias e não se engajar no multilateralismo, acho que vamos ver logo logo que ele estava errado. No nível de política, acho sua interpretação do mundo bizarra.”

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Imagem de Bolsonaro é negativa mesmo na imprensa internacional ‘de direita’

Pressionado por uma evidente piora na reputação do Brasil por conta da propagação do novo coronavírus no país, o presidente Jair Bolsonaro disse que sua uma imagem no exterior é ruim porque a imprensa mundial é de “esquerda”.

O argumento é raso, não se sustenta, e vem desde a época da eleição dele. À época, veículos claramente conservadores da imprensa estrangeira, como a revista The Economist e o jornal Financial Times, ambos com forte tendência liberal na economia, foram acusados de serem “comunistas” por seus apoiadores. As duas publicações continuam críticas ao governo brasileiro –e continuam não sendo nada “de esquerda”.

Além disso, Bolsonaro ignora que sua imagem negativa no resto do mundo se constrói desde a eleição e se fortaleceu especialmente com o noticiário ligado à destruição da Amazônia no ano passado. Isso com espaço em praticamente toda a imprensa internacional –de esquerda, de centro e de direita. O mesmo acontece agora, quando o governo nega a gravidade da pandemia enquanto o Brasil se consolida como “epicentro” do contágio de Covid-19.

Uma rápida busca por veículos internacionais “de direita” deixa bem evidente que a imagem negativa do presidente não se deve a uma tendência esquerdista. É o jornalismo bem feito e ligado a fatos que tem exposto uma má reputação do Brasil.

Um exemplo claro é o Wall Street Journal, publicação que pode ser vista como a voz do mercado financeiro nos Estados Unidos (e no mundo), e que é um dos veículos “de direita” que tem dado espaço a uma imagem negativa do Brasil sob Bolsonaro.

O jornal se consolidou desde antes da eleição de 2018 como a publicação internacional mais visivelmente favorável a Bolsonaro, e até publicou um artigo de Mary Anastasia O’Grady no último dia 17 defendendo que Bolsonaro “está certo” em querer que o Brasil deixe de lado a quarentena e volte ao trabalho. Ainda assim, a cobertura jornalística da publicação tem dado espaço a um noticiário mais negativo sobre o Brasil e o presidente.

No dia 19, por exemplo, publicou uma longa reportagem sobre os efeitos do novo coronavírus em enfermeiros do Brasil, e deu espaço a críticas a Bolsonaro, alegando que ele “minimiza a contaminação”.

“Com a doença se espalhando em vilarejos indígenas na Amazônia e em favelas nas cidades brasileiras, alguns governadores e prefeitos adotaram medidas de distanciamento social. Ainda assim, as restrições do Brasil são geralmente mais flexíveis do que as medidas de bloqueio impostas em muitos países europeus e asiáticos e têm um oponente influente: o presidente Jair Bolsonaro, que quer manter a nona maior economia do mundo operando normalmente”, diz o WSJ.

“A posição do presidente sobre a pandemia o colocou em conflito direto com especialistas em doenças infecciosas, incluindo pessoas de seu próprio ministério da saúde e vários governadores”, continua.

“A confusão no Brasil está levando um número crescente de pessoas a ir trabalhar e deixar suas casas, mesmo em comunidades onde os líderes locais têm defendido medidas de distanciamento social.”

O jornal noticiou o bloqueio imposto pelos EUA a viajantes do Brasil, por exemplo.

“O número de casos confirmados de Covid-19 no Brasil e de mortes por doenças causadas pelo novo coronavírus está aumentando rapidamente. O país sul-americano agora é o segundo no mundo em casos confirmados, logo atrás dos EUA, com 347.398 em 23 de maio. Muitos especialistas dizem que o número real é provavelmente muito maior.”

Além da pandemia, o WSJ também noticiou a investigação sobre a possível tentativa de Bolsonaro de interferir na Polícia Federal.

“A Suprema Corte do Brasil causou impacto no presidente Jair Bolsonaro na sexta-feira ao permitir a exibição de um vídeo de uma reunião do gabinete na qual ele parece pedir ao seu então ministro da Justiça que interfira nas investigações criminais de familiares”, diz o jornal.

A rede de TV americana Fox News, veiculo de clara tendência conservadora e frequentemente associada à defesa do presidente Donald Trump, também tem criticado Bolsonaro.

O site da Fox News publicou uma reportagem sobre o editorial da revista de medicina The Lancet, que chamou Bolsonaro de “maior ameaça” ao Brasil por conta da pandemia.

“Bolsonaro subestimou repetidamente a propagação do vírus –que matou mais de 270.000 pessoas em todo o mundo. Recentemente, um jornalista perguntou a ele sobre a rápida disseminação do coronavírus no Brasil, à qual o presidente de extrema direita respondeu: ‘E daí? O que você quer que eu faça?'”, diz a Fox News.

Na semana passada, em uma nova crítica, a rede de TV conservadora dos EUA tratou da postura de Bolsonaro, que ignorou políticas de isolamento social.

“O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, mais uma vez desconsiderou os conselhos de saúde pública em meio à pandemia de coronavírus no domingo para tirar fotos com os manifestantes, enquanto a maior cidade do país em São Paulo luta para manter seu sistema de saúde funcionando com hospitais públicos a 90% da capacidade”, disse.

“Bolsonaro, que recebeu críticas generalizadas no país e no exterior por instar os brasileiros a voltar ao trabalho durante a pandemia, se misturou com apoiadores em uma multidão em Brasília, capital nacional, no domingo. Usando uma máscara e ladeado por ministros e seguranças, ele posou para fotos com pelo menos três crianças pequenas.”

A Fox News também continua destacando o vídeo em que o filho do presidente diz que o exame de Bolsonaro havia dado positivo para o coronavírus –o que o governo negou em seguida.

No Reino Unido, o jornal The Daily Telegraph, que também tem uma linha editorial mais à “direita” também adotou uma postura crítica e mostra uma imagem negativa do governo de Bolsonaro.

“Entre implosão política e um vírus fora de controle, Bolsonaro enfrenta a perspectiva de se tornar conhecido como o homem que quebrou o Brasil”, diz uma reportagem recente.

Segundo o jornal britânico, Bolsonaro adotou um discurso que é “uma mistura de negação e hostilidade. Em um discurso irado, o presidente criticou a ‘histeria’ da imprensa por espalhar o medo e descartou o vírus como uma ‘gripezinha'”.

Esses são só alguns exemplos de veículos de imprensa internacional que claramente não estão alinhados a nenhuma “esquerda”, mas que têm uma linha editorial que crítica o governo brasileiro e mostra uma imagem negativa do país. O problema não está nos mensageiros, mas na mensagem que o presidente está passando ao minimizar a pandemia, rejeitar políticas de isolamento social, não demonstrar apego ao conhecimento, ignorar a ciência e deixar adotar uma postura séria de combate à pandemia. Isso é o que afeta de verdade a imagem internacional do Brasil.

Pandemia e democracia

O trecho abaixo é parte da reportagem “Estudo indica que ditaduras foram mais eficientes do que democracias no combate inicial à Covid-19”, que escrevi e que foi publicada pelo UOL na sexta-feira (22). Foi escrito após assistir a um seminário apresentado pelo pesquisador Gabriel Cepaluni e de uma longa entrevista realizada com ele em seguida.

A propagação do novo coronavírus pelo mundo revelou um cenário controverso para cientistas políticos acostumados a defender as vantagens de regimes democráticos sobre qualquer outra alternativa de governo. Segundo um estudo que avaliou as diferentes respostas aos cem primeiros dias da pandemia em mais de uma centena de países por todo o planeta, regimes autoritários se mostraram mais bem sucedidos do que regimes democráticos no combate inicial à doença.

Apesar de ser uma avaliação surpreendente, a pesquisa revela que, quando o remédio para uma pandemia é o cerceamento de liberdades, um regime político já acostumado a controlar seus cidadãos vai ser mais bem sucedido do que um regime que oferece liberdade à população, explicou o pesquisador Gabriel Cepaluni, professor da Unesp de Franca, em entrevista ao UOL Notícias.

“O resultado principal do estudo é que ditaduras estão sendo mais capazes de reduzir as mortes mais rapidamente do que as democracias”, disse Cepaluni. “Uma característica essencial da ditadura em relação a democracias é que as liberdades civis são coibidas. Nas democracias isso não acontece. Temos liberdade civil, direito à manifestação, direito a formar grupos políticos e várias outras coisas. E uma das principais medidas de combate à pandemia é o isolamento social, que é coibir liberdades civis. Então para um regime democrático que nunca coibiu liberdades civis, isso é uma novidade”, avaliou.

A avaliação foi publicada no mês passado no estudo acadêmico “Political Regimes and Deaths in the Early Stages of the COVID-19 Pandemic” [Regimes políticos e mortes nos primeiros estágios da pandemia de Covid-19]. Ele realizado por Cepaluni em parceria com pesquisadores Michael T. Dorsch e Réka Branyiczki, ambos da Central European University, de Budapeste.

A ideia central é que países com instituições políticas mais democráticas registraram mortes em uma escala per capita maior, e mais rapidamente, do que países menos democráticos.

Pandemia e desigualdade: ‘Se livrar do governo talvez não seja suficiente’

Impactos econômicos por vezes têm disputado a atenção política (especialmente no Brasil) na discussão sobre efeitos imediatos e futuros da pandemia do novo coronavírus. Discute-se a recessão causada pelo confinamento, o empobrecimento da população e até o risco de convulsão social por esses motivos. Para o futuro, fala-se sobre a possível recuperação das finanças, os efeitos políticos da crise retração e, um dos pontos mais interessantes, como isso pode afetar a desigualdade no mundo e no Brasil.

Um dos principais estudiosos do assunto é o historiador Walter Scheidel, professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos — que entrevistei para a BBC News Brasil no início de abril, e que também falou com a Folha nesta semana.

BBC Brasil – Coronavírus: Autor americano aponta potencial da covid-19 para reduzir desigualdade no mundo

Folha – Covid-19 aumentará desigualdade em hora muito infeliz para Brasil, diz historiador

Ele é autor do livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, obra que traça a história da desigualdade social no mundo e analisa as rupturas levaram a sua diminuição. O livro vai ser lançado agora no Brasil pela editora Zahar com o título “Violência e a história da desigualdade”.

A avaliação dele é bem interessante. Por um lado, pandemias ao longo da história tiveram o poder de reduzir desigualdades, mas a Covid-19 não deve ter este efeito imediatamente. Por outro lado, a crise gerada pela propagação do vírus pode mudar o tom da política nacional, criando uma postura mais “progressista” e de esquerda –o oposto do que há hoje em países como o Brasil e os EUA.

Crises muito sérias podem afetar preferências políticas e escolhas políticas. Então, se este evento for severo o suficiente, ele pode alterar as preferências do eleitorado de forma que se mova para uma defesa de um estado de bem-estar social mais forte, impostos mais altos para pagar pelos déficits causados por pacotes de estímulo, mais assistência médica, maior proteção aos trabalhadores”, avaliou na conversa comigo.

Na entrevista publicada agora pela Folha, entretanto, ele é mais pessimista ao analisar a situação do Brasil, e indica que o estrago causado pela pandemia é tão grave que talvez uma guinada para uma visão mais social da economia não seja suficiente para evitar um aumento da desigualdade no país.

O momento para o Brasil e para a América Latina é muito infeliz. A primeira década deste século foi muito positiva, e não apenas para o Brasil. Houve um boom econômico, mudanças políticas que levaram a uma maior distribuição de renda e políticas para a educação. Muitas coisas juntas ocorreram no momento de um boom de demanda da China por commodities.

Isso ajudou a reduzir as desigualdades, mas os problemas começaram a aparecer cedo na década atual, e a tendência de equalização social parou repentinamente. A partir daí houve uma mudança política radical que não chega a surpreender se levarmos em conta o quão profundamente arraigado está o conservadorismo nessas sociedades. Isso talvez fosse até inevitável. E tudo talvez fique ainda pior com a crise em andamento agora.

Eu ficaria bastante pessimista em relação às perspectivas de o Brasil conseguir retomar uma trajetória de diminuição de suas desigualdades como o fez há 10 ou 15 anos. A não ser que, como disse, as coisas fiquem tão ruins que a pressão para mudanças seja muito grande. E apenas se livrar do atual governo talvez não seja o suficiente. Teria de haver um descontentamento muito grande entre os pobres e mesmo na classe média para que algo assim pudesse ocorrer.”

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Abaixo, selecionei alguns trechos da entrevista publicada na BBC News Brasil, em que Scheidel fala sobre possíveis impactos

BBC News Brasil – O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, está indo na contramão de outros políticos do mundo e rejeitando políticas duras de confinamento por conta dos efeitos negativos na economia. Acha que este comportamento pode ter relação com uma tentativa de evitar este tipo de impacto da pandemia na política?

Walter Scheidel – Acho que sim. Vemos isso todas as vezes ao longo da história. A elite entrincheirada não tem interesse nesse tipo de mudança, então sempre há resistência a mudanças trazidas por reformas progressistas. O resultado é determinado em ampla medida por quem vence, por que lado dessa disputa se coloca com mais força. Houve pessoas na Idade Média que tentaram fazer os pobres trabalharem pelos mesmos salários que recebiam antes, apesar de haver apenas metade dos trabalhadores ativos de antes, numa tentativa de coagir as pessoas a continuar no mesmo status quo, o que não era possível. Em outros momentos, isso foi possível, como em situações do feudalismo.

Há diferentes tipos de resposta para este tipo de crise que enfrentamos agora, e vai depender muito do tipo de país em que se vive. É possível que as forças reacionárias do status quo sejam tão fortes que, ao fim da crise, a vida volte ao mesmo sistema que havia antes, mas com mais polarização e desigualdade, o que pode criar instabilidade no longo prazo. Por outro lado, podemos pensar que o outro lado sai com vantagem, e vemos uma mudança de trajetória. Isso está em aberto atualmente, especialmente em países como os Estados Unidos e o Brasil, onde já há muita desigualdade e os interesses entrincheirados são muito poderosos.

Se estivéssemos falando da Suécia, a diferença não seria tão grande, já que já existe um estado de bem-estar social, que deve dar ainda mais apoio à população. Mas em países como os nossos, está tudo muito em aberto e não temos como saber que lado vai vencer. Ainda assim, acredito que as forças progressistas agora têm uma chance maior de serem bem-sucedidas enquanto a crise piora, pois se torna mais fácil eles apresentarem seus argumentos.

BBC News Brasil – O senhor fala sobre os impactos de pandemias em desigualdades, e falou sobre as mudanças de prioridades por conta da propagação do coronavírus. Aqui no Brasil há uma expectativa de que a população mais pobre sofra mais com os efeitos da doença, por conta de uma desigualdade já muito grande. Acha que esse tipo de situação pode ter impactos políticos e econômicos no país?

Walter Scheidel – No curto prazo, sem dúvida isso vai aumentar a polarização, pois vai fazer com que as pessoas se sintam ainda mais alienadas por verem que não são parte do sistema. Se nada mudar, isso pode desestabilizar a sociedade além do que já vemos no Brasil atualmente. Isso ainda pode ser usado por políticos para acelerar mudanças para um lado ou o outro do espectro político dessa polarização. Mas acho que há um potencial para um reforço a políticas progressistas, muito mais do que havia um mês atrás.

BBC Brasil News – Ainda assim, seu livro menciona a América Latina do início do século 21 como um dos principais candidatos para uma equalização sem violência. Olhando para esse movimento, quão importante acha que ele foi e por que acha que ele não foi mais bem sucedido no sentido de diminuir as desigualdades?

Walter Scheidel – É uma questão muito difícil, e tem muita gente tentando entender esse movimento. Aparentemente, foi um progresso muito limitado a um período de cerca de uma década em que o progresso foi alcançado por uma combinação rara de circunstâncias: havia mudança política, havia o resultado de reformas aprovadas nos anos 1990, havia demanda por commodities na China e em outras economias emergentes, havia o resultado de investimentos em educação feitos nos anos 1990. Foi a culminação de fatores que levaram a esse resultado, mas não está claro o quanto esses resultados eram sustentáveis. Além disso, sempre houve forças de reação presentes, que esperavam suas chances de se impor contra esses movimentos, o que vemos claramente no Brasil atualmente, mas também em outros países. Houve uma reação contra isso. Parece que as condições que favoreciam o movimento por menor desigualdade se enfraqueceram, e as forças de reação conseguiram ganhar mais força para lutar contra ela.

A Cara do Brasil – Um país ‘doente’ e isolado

Meu comentário no quadro A Cara do Brasil, na rádio CBN, de 17 de maio de 2020.

Talvez a entrada ao vivo tenha sido pouco menos precisa do que eu gostaria. Reação errática ao Covid-19 faz o Brasil ser visto como “doente” na própria América Latina, e em todo o mundo, e isso vai afetar muito o posicionamento internacional do país.

De líder débil, Brasil vira ‘o doente da América Latina’

O Brasil nunca foi exatamente uma potência hegemônica na América Latina. Por mais que seja reconhecidamente o maior, mais forte e mais rico da região, o país sempre teve uma relação complicada com o resto do continente, exercendo o que poderia no máximo ser chamado de liderança tênue, pouco significativa. Nada disso se compara ao momento atual, entretanto, quando a propagação do novo coronavírus na maior nação latino-americana faz com que o Brasil seja visto por seus vizinhos como uma ameaça à saúde pública regional. O Brasil virou “o doente da América Latina”. 

A descrição surge de uma analogia à expressão “the sick man of Europe”, tradicionalmente usada desde o século XIX para se referir a países da região que enfrentam graves crises econômicas. Em meio a uma pandemia, a ideia de “doente” ganha novos significados, e passa a representar uma nação que realmente enfrenta problemas de saúde… E que pode contaminar seus vizinhos.

Isso fica evidente na crescente cobertura que a imprensa estrangeira tem feito sobre os riscos que a falta de controle do vírus no Brasil representam para a região.

Segundo a Associated Press, “o aumento praticamente descontrolado de casos de Covid-19 no Brasil está gerando medo de que trabalhadores da construção civil, caminhoneiros e turistas do maior país da América Latina espalhem a doença para os países vizinhos que estão fazendo um trabalho melhor no controle do coronavírus”.

Uma reportagem publicada pela BBC News Brasil resumiu assim a situação: “Com mais de 11 mil mortes por coronavírus e a maior taxa de letalidade por covid-19 na América do Sul, o Brasil virou motivo de grande preocupação e temor nos países vizinhos — levando aliados do presidente Jair Bolsonaro a colocar a afinidade política de lado e adversários na região a intensificar suas críticas ao líder brasileiro.”

A resposta frágil do governo brasileiro à pandemia e o aumento exponencial do número de vítimas no país ameaçam enfraquecer ainda mais os laços do Brasil com a região. 

Isso está acontecendo apesar de o ministro das Relações Exteriores, em sua resposta raivosa a ex-chanceleres que criticaram a atuação do governo de Jair Bolsonaro na esfera internacional, ter alegado que “fizemos mais pela integração latino-americana do que volumes e volumes de discurseira integracionista”.

Este novo (pior) status do Brasil na região tende a ser problemático para negociações futuras e para a tentativa de integrar a América Latina e tentar ser o líder dessa parte do continente (o que traria mais status global). Ainda assim, como mencionado no início deste artigo, não significa que o Brasil já tenha tido algum tipo de hegemonia regional.

Parte disso vem de uma questão de identidade. Como o acadêmico britânico Leslie Bethell defendeu em um importante artigo de 2010, historicamente, o Brasil nunca foi considerado parte da América Latina –nem pelas elites brasileiras nem pelas elites do resto da região. E foi só depois do fim da Guerra Fria que ele começou a tentar ter um maior engajamento com o continente.

Bethell (que foi meu professor no King’s College London durante o mestrado) alega que intelectuais brasileiros tinham consciência do passado comum com o restante do continente, mas se viam separados pela geografia, pela história, pela economia, pela formação da sociedade e especialmente pelo idioma, pela cultura e pelas instituições políticas. Este distanciamento, portanto, pode ter dificultado na construção de uma liderança regional pelo Brasil.

Outra parte da dificuldade em assumir a liderança na região vem de uma postura historicamente complicada do Brasil em relação aos vizinhos. Desde pelo menos o início do século XIX, o Brasil assumiu uma postura de superioridade em relação ao restante da região, o que só ganhou força depois da independência.

Segundo Ron Seckinger, Dom Pedro I e os brasileiros acreditavam que o “Império” seria uma potência proeminente na região e tentavam projetar desde então uma imagem nacional de superioridade do Brasil por conta das suas instituições monárquicas, seu território, sua população e seus recursos naturais.  

Outro forte argumento sobre a dificuldade em ser a principal potência regional foi apresentado no ano seguinte pelo pesquisador argentino Andrès Malamud em um artigo acadêmico. Segundo ele, uma forte divergência entre as performances do Brasil em escala regional e global faziam com que o país se consolidasse na América Latina como “um líder sem seguidores”.  

Uma evidência disso é que os países da região não assumiram uma postura de defesa do Brasil em sua tentativa de assumir papéis importantes em instituições internacionais. Este é o  caso, por exemplo do fracasso da tentativa brasileira de tornar o país um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (CSNU).

A dissertação de mestrado defendida por Mariana Bezerra Moraes de Araújo na Universidade do Minho, em Portugal, em 2011, também comprova isso. A pesquisadora analisou a cobertura que a mídia internacional fez da candidatura brasileira ao CSNU, e mostrou que jornais da Argentina e do México foram os mais ativos na rejeição a este papel de liderança do Brasil.

Não faltam evidências históricas e políticas dessa relação problemática do Brasil com a América Latina, portanto. Mas o fato de não ser reconhecido como líder não siginificava uma preocupação direta com a relação com o Brasil. O comportamento pacífico do país desde a Guerra do Paraguai pode ter ajudado a fazer com que o país não fosse visto como uma ameaça à segurança da região.  

A ideia de ameaça aparece agora, entretanto, em meio à pandemia, com o alerta em relação a um possível risco do país à saúde dos vizinhos. Incapaz de combater o novo coronavírus e de proteger sua própria população, o Brasil ganha uma imagem mais negativa, de “doente” na região.

A Cara do Brasil – diplomacia do confronto contra o país

No quadro A Cara do Brasil, na rádio CBN, neste domingo (10/05/2020), falo sobre o artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e de outros ex-ministros das Relações Exteriores e diplomatas sobre a política externa do governo de Jair Bolsonaro.

A diplomacia brasileira é mundialmente reconhecida pela busca do diálogo e do consenso, mas o que vem sendo praticado pela atual gestão é o oposto disso. A chamada ‘política do confronto’ é um rompimento com a história, vai contra a Constituição e foi alvo de críticas em artigo assinado por ex-chanceleres de todas as ideologias e pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Líder dos “avestruzes”, Brasil vira sinônimo de negação da crise em meio a devastação do coronavírus

A propagação do novo coronavírus se transformou em uma crise global de saúde desde o início de 2020. Enquanto países do mundo inteiro lidavam com uma pandemia que até o começo de maio havia deixado mais de 250 mil mortos, o Brasil vê sua reputação se afundar enquanto se consolida como símbolo de atuação equivocada no combate ao Covid-19.

A imagem mostrada pela cobertura da imprensa internacional no primeiro semestre é de um país que mergulha em crises e parece ignorar o problema enquanto a doença começava a devastar sua população.

Ilustração publicada pela revista The Economist

À medida que o país via crescer rapidamente o número de vítimas da doença, e o jornal americano The Washington Post publicava em sua capa uma foto de centenas de covas sendo cavadas em um cemitério de São Paulo, o Brasil virou o líder da “Aliança do Avestruz”, segundo uma reportagem publicada pelo jornal econômico Financial Times. 

O termo foi criado pelo professor Oliver Stuenkel, da FGV. É uma referência ao mito de que avestruzes enfiam a cabeça na areia para se esconder de problemas e fugir do perigo. O país finge que não há nada de errado, e o governo de Jair Bolsonaro passou a ser visto como o principal negacionista da crise global de saúde causada pela pandemia.

Enquanto a maioria dos líderes do mundo tomou ações drásticas para lutar contra a propagação do coronavírus, dizia a reportagem, Bolsonaro continuava minimizando a ameaça à saúde dos brasileiros.

O editorial da revista científica The Lancet, uma das mais importantes na área médica, resumiu a reputação do governo brasileiro nessa semana ao chamar Bolsonaro de “a maior ameaça à resposta do Brasil à Covid-19”. A publicação sugere que ele mude sua conduta ou seja “o próximo a sair”.

Um estudo de imagem e reputação do país realizado pelo escritório de consultoria Curado & associados em sete veículos da imprensa internacional comprovou essa imagem negativa da gestão da pandemia no Brasil.

A mídia estrangeira deu grande visibilidade a declarações polêmicas do presidente e à falha na entrega de soluções para a crise. Além disso, houve registro internacional sobre o crescimento da insatisfação da população, com uma série de panelaços contra o governo em várias partes do país. 

Isso tudo levou Bolsonaro a ganhar destaque na mídia internacional como o líder mais ineficiente do mundo no combate ao novo coronavírus. A avaliação foi feita pelo presidente da agência de risco Eurasia Group, Ian Bremmer

“O movimento de negação de coronavírus oficialmente tem um líder e é o presidente brasileiro Jair Bolsonaro”, resumiu uma reportagem da revista americana The Atlantic. “Ele descreveu a doença como uma ‘gripezinha’, um insignificante ‘resfriado’. Ele acusou a mídia de fabricar ‘histeria’”, disse a publicação. 

Essa imagem negativa se espalhou nos principais veículos da imprensa internacional. “Nenhum líder mundial foi mais ativo em subestimar a ameaça do coronavírus do que o presidente brasileiro”, criticou a revista The New Yorker. “Especialistas médicos temem que Bolsonaro possa estar acelerando a marcha do país em direção a uma crise devastadora da saúde pública”, destacou The Guardian. O jornal americano The Washington Post foi além e publicou artigo contra o governo brasileiro. “Bolsonaro está colocando o Brasil em perigo e precisa sofrer impeachment”, disse.

Não fossem suficientes os problemas ligados à crise de saúde e a negação dos riscos da pandemia pelo governo, a imprensa internacional também destacou que o Brasil vivia uma situação pior do que a do resto do mundo por conta de problemas políticos com a demissão dos ministros da saúde, Luiz Henrique Mandetta, e da Justiça, Sergio Moro. Como resumiu a agência de notícias internacional Reuters, o país conseguiu a proeza de ter “uma crise política no meio de uma crise econômica durante a pandemia de coronavírus”. 

A imagem do Brasil de Bolsonaro na China: Um país pouco sério e cópia de Trump nos EUA

O calor do noticiário sobre a pandemia de Covid-19 e as crises diplomáticas entre Brasil e China acabou ofuscando um dos pontos mais interessantes de uma entrevista recente com especialistas em China publicada pela BBC News Brasil.

Enquanto o foco da reportagem ficou sobre os assuntos obviamente importantes no momento, como a geopolítica global e as relações entre os dois países, foi possível entender melhor como a China vê o Brasil de Jair Bolsonaro –tema que é central para a minha pesquisa acadêmica sobre percepções externas a respeito do Brasil.

O Brasil é um país pouco conhecido na China, e o governo atual é visto como uma cópia do que Donald Trump faz nos Estados Unidos, mas com menos seriedade

A avaliação ficou evidente na entrevista que fiz com Júlia Rosa, Jordy Pasa e Lívia Machado Costa, cofundadores da plataforma Shūmiàn, que produz conteúdo analítico em português e em espanhol sobre a China. A reportagem completa foi publicada na BBC News Brasil com o título: “Aderir a discurso anti-China na pandemia põe Brasil em posição vulnerável, veem analistas”

Selecionei abaixo alguns trechos da entrevista com os três em que falam mais especificamente sobre esta questão da percepção chinesa a respeito do Brasil.

Júlia Rosa – Na época das eleições surgiu a repetição do discurso do ‘Trump dos trópicos’, mas se a China é pouco conhecida no Brasil pelo cidadão médio, o Brasil é igualmente pouco conhecido na China. Os dois países se baseiam muito nos estereótipos existentes e existe muito ainda a ser percorrido no âmbito de conhecimento de história, política e cultura chinesa –e brasileira, lá. No âmbito de estudos China-América Latina, houve uma preocupação com possível hostilidade do governo, já que o Brasil é um parceiro comercial importante e uma porta de entrada para a região como um todo. Acredito que a tranquilidade ao governo chinês se deu pela antiga e consolidada relação com o agronegócio brasileiro, que tem grande influência no Congresso e no Planalto.   

Jordy Pasa – Por trás das hostilidades entre chineses e estadunidenses há um contexto maior de disputa por hegemonia global, seja ela militar, econômica ou tecnológica, que obviamente não existe quando olhamos para o caso brasileiro. Não somos lidos com o mesmo nível de seriedade por Pequim, o que, a depender da situação, pode funcionar contra ou a nosso favor. Por um lado, retaliações mais graves são pouco prováveis, se engajar em um conflito com o Brasil está muito longe do radar chinês. Por outro, somos alvos mais vulneráveis, e logo menos capazes de se defender caso o atual desconforto entre os dois países se agrave.

Lívia Machado Costa – O atual posicionamento diplomático brasileiro em relação à China tem sido, por ora, subserviente à postura dos Estados Unidos, ou seja, instável e aquém do histórico positivo das relações sino-brasileiras e do potencial do Brasil no Sul global. No entanto, em parte devido a essa mudança de trajetória, há uma ascensão da paradiplomacia brasileira em campo, com governos estaduais abrindo escritórios comerciais em cidades estratégicas na China e criando trocas mais positivas entre as duas nações. 

Júlia Rosa – Acho fascinante como há uma construção de linguagem e resposta igual à de Trump e apoiadores. As frases, os memes e até as hashtags muitas vezes são apenas versões traduzidas do que já estava circulando na internet estadunidense. É um reflexo muito significativo do nosso alinhamento ideológico enquanto governo e de certos grupos da sociedade.

Lívia Machado Costa – É alarmante que um país como o Brasil esteja fazendo declarações desse nível à China, e o corpo diplomático chinês tem sido vocal em relação a isso. Contudo, a postura brasileira parece ser recebida como uma falta de agenda própria em relação à China, e mais como um satélite dos Estados Unidos. Quem perde somos nós, abdicando por falta de assertividade de nosso potencial no Sul global e deterioramento da parceria estratégica com a China.

Pergunta – Os atritos diplomáticos entre o governo Bolsonaro e a China chegam a repercutir de alguma forma na China?

Júlia Rosa – Não de forma significativa ou para além do corpo diplomático ou governamental. Primeiro que o país ainda está muito centrado em si e na sua recuperação, luto e toda a bagagem que veio desses dois últimos meses. Em segundo lugar, o discurso do deputado e esses atritos são um “copia e cola” do que está sendo dito por Trump e seus apoiadores. No fim das contas, as reações acabam sendo direcionadas ao governo estadunidense. Nesse quesito, a repercussão é majoritariamente negativa. A diferença é que os EUA é um parceiro muito mais importante para a China do que o Brasil. Então, por enquanto estamos dando sorte que não somos tão populares.

Lívia Machado Costa – Os atritos não ganham força entre o público chinês, apesar de as recentes declarações do ministro Weintraub terem sido tratadas pela mídia chinesa. Na internet chinesa, as menções ao Brasil estão mais relacionadas à resposta ao Covid-19, com destaque às assimetrias entre governos estaduais e federal e as declarações de Bolsonaro dizendo se tratar apenas de uma “gripezinha”. O “Trump dos trópicos” como Bolsonaro é descrito na China, tem sido mencionado como um agente passivo durante a pandemia. Surpreende o público chinês um chefe de Estado não tratar a emergência do Covid-19 com maior assertividade.