A Cara do Brasil – Um país sem uma narrativa

Comentário do dia 28 de junho no quadro A Cara do Brasil na rádio CBN comentou a entrevista com o consultor Caio Esteves sobre a relação entre a identidade nacional e a “marca” do país. Esteves argumenta que o Brasil nunca se apropriou da narrativa sobre sua própria realidade.

O Brasil precisa melhorar sua imagem pela ação, não pelo discurso

O Brasil vê sua imagem internacional se derreter ao se tornar o epicentro da pandemia do novo coronavírus. Enquanto isso, o governo de Jair Bolsonaro –símbolo global de má gestão da crise de saúde– reclama da forma como o país está sendo retratado no exterior. 

Um dos pontos centrais para entender a percepção externa do Brasil, entretanto, está o fato de que a “marca” de um lugar é uma questão muito mais ligada a sua identidade do que simplesmente à imagem. “O que fazemos é o que determina aquilo que somos e, por consequência, aquilo que fazemos para sermos percebidos (de forma controlada ou não)”.

A citação foi tirada da edição em português do livro “Imaginative Communities: Cidades, Regiões E Países Admirados”, do pesquisador Robert Govers. A obra vai ser lançada agora no Brasil, com um capítulo escrito por Caio Esteves, que foca especificamente na questão dessa marca do país. 

Um dos problemas do Brasil, ele diz, é que “nossa identidade está diluída,  descuidada, soterrada pelas mazelas do dia a dia que, essas sim, invadem a narrativa.” 

Esteves é fundador da consultoria Places for Us e autor do livro “Place Branding”. Na entrevista abaixo ele fala sobre essa dificuldade do Brasil de se apropriar da sua própria identidade, de dominar a narrativa sobre o país. Tudo isso, ele explica, porque é preciso entender que não se trata de uma questão de imagem e de publicidade, mas de uma base forte dentro do país. 

“Precisamos interferir na origem da mensagem. Cada vez mais, vamos alterar a narrativa pela ação, pelo exemplo, e não pelo discurso ou pela quantidade de dinheiro que colocamos para divulgar um destino, uma ideia ou um posicionamento. Não tem nada a ver com publicidade e tem tudo a ver com política.

Leia abaixo a entrevista:

Daniel Buarque – No capítulo sobre o Brasil no livro “Imaginative Communities: Cidades, Regiões E Países Admirados”, você argumenta que place branding é sobre identidade, não sobre imagem. Mas também diz  que nossa identidade está diluída. Falta uma identidade ao país?

Caio Esteves – Não falta identidade. Falta o país se apropriar dessa identidade.

Não tenho dúvida de que há um problema sobre imagem, e falamos muito sobre isso no país. Há uma vertente mais tradicional que vê isso olhando apenas para a imagem percebida, buscando formas de medir isso e interferir nessa percepção internacional. E tem uma outra frente, na qual me incluo, que entende que essa imagem é consequência de uma identidade, e que antes de ser uma questão de percepção externa, é uma questão de percepção interna, de autocompreensão de uma comunidade, cidade, país, assim por diante.

O Brasil tem uma identidade. Ela está aí. Só que nós não nos apropriamos dela.

A gente até hoje vem usando um discurso de 1952, com o Zé Carioca, lembrando o Brasil através do carioca malandro. E a gente troca o Zé Carioca por algo pior que é um presidente incompetente que destrói o soft power do país completamente quando se torna uma das piores lideranças globais diante da pandemia.

A gente sempre teve um soft power relevante, mas a gente nunca se apropriou disso de uma forma que trouxesse os frutos que isso poderia trazer.

Daniel Buarque – Como é possível fazer isso?

Caio Esteves – Começa de uma compreensão de que identidade é essa. E só existe uma forma de fazer isso, que é envolvendo as pessoas. Isso não vai ser desenvolvido por uma agência ou uma consultoria. O que vale é a expertise de quem está trabalhando com isso, mas de forma bastante desprovida do egocentrismo presente nas grandes consultorias, entendendo que a comunidade é quem manda. Só tem um jeito de entender a identidade, que é envolver as pessoas que se relacionam com o lugar. E através de um processo franco, verdadeiro, autêntico, de colaboração de cocriação, se chegar em um caminho. O jeito de chegar a essa identidade não é alguém dizer qual é a identidade, é pelo contato com a comunidade.

Daniel Buarque – Em um artigo recente na Folha, Washington Olivetto diz que o produto Brasil precisa melhorar para poder promover o país no exterior

Caio Esteves – Eu discordo. Acho que estamos numa situação anterior a isso. A gente não está tentando vender nada. A gente não sabe nem o que a gente pode vender. É simples. O turismo federal fez, ele mesmo, o logotipo da marca Brasil. Tem coisa mais estúpida do que isso? Está tudo errado. Não temos uma oferta. Não temos uma percepção sólida. A gente cai ano após ano nos rankings internacionais de visita. Desperdiçamos Olimpíada e Copa do Mundo, os dois maiores eventos de alcance internacional, sem um projeto de país, de futuro. O mundo todo pensa no futuro. Até a Costa Rica tem plano para 2030, enquanto a gente pensa em que vai ser pego na próxima fase da Lava Jato, ou qual vai ser o próximo ministro a cair. A gente não consegue ter uma visão de longo prazo. E país sem visão de longo prazo não tem um projeto. E país sem projeto não tem o que vender. É um problema sistêmico, estrutural.

Daniel Buarque – Você falou sobre a importância de ouvir a comunidade para gerar essa autocompreensão do país, mas vivemos um momento de extrema polarização, em que o governo tem pouco apoio popular. Como é possível fazer isso nessa situação?

Caio Esteves – Esse diálogo deveria partir do pressuposto de entender elementos transversais a todos os lados dessa polarização. O mais óbvio deles, ainda que haja discordância sobre o caminho, é o desenvolvimento econômico. É visto como importante por todos os lados. O ponto de partida é estabelecer pontos convergentes entre as diferenças, para estabelecer um diálogo para ter um caminho com objetivo claro nesse sentido. Quanto melhor for a capacidade de fazer todo mundo compreender o que vai ser feito, melhor vai ser a capacidade de lidar com a diferença em um processo colaborativo, ainda que haja atritos.

Por outro lado, se o governo não é capaz de promover este tipo de discussão, a iniciativa privada pode encabeçar essa discussão. A potencialização de uma identidade de lugar está cada vez mais na mão da sociedade civil organizada e da iniciativa privada. Vejo cada vez mais o poder público como um facilitador, e não como agente da transformação.  

Daniel Buarque – Essa dificuldade de autoconhecimento pode ter relação com a preocupação constante do país com a sua imagem internacional e seu status no resto do mundo?

Caio Esteves – O interesse em saber o que os outros pensam é natural. O problema no caso do Brasil é que somos mero espectadores de uma narrativa alheia à nossa vontade. A gente hoje torce para falarem bem do Brasil, mas de fato o país não se apropria de algo que possa de fato promover uma mudança e interferir nessa narrativa. As pessoas confundem interferir na narrativa com alterar o storytelling. Não é mudar o texto. É mudar a origem do que gera a percepção dessa narrativa. A forma de fazer isso é trabalhar a realidade de outra forma para poder emitir mensagens que façam mais sentido diante do que está acontecendo. Isso é complicadíssimo, pois temos um governo que mais atrapalha do que ajuda. Precisamos interferir na origem da mensagem. Cada vez mais, vamos alterar a narrativa pela ação, pelo exemplo, e não pelo discurso ou pela quantidade de dinheiro que colocamos para divulgar um destino, uma ideia ou um posicionamento. Não tem nada a ver com publicidade e tem tudo a ver com política.

Daniel Buarque – Isso é ainda mais importante em um momento de pandemia como o atual…

Caio Esteves – Uma das evidência importantes mostradas pelo Covid-19 é a fragilidade dos líderes nas diferentes escalas. Vemos Nova Zelândia e Alemanha, por exemplo, saindo muito fortalecidos, enquanto países como o nosso vão para a lanterna, fazendo patacoada atrás de patacoada, virando motivo de piada internacional.

Daniel Buarque – Nesse sentido, acha que é possível separar a percepção sobre o líder da percepção sobre o país?

Caio Esteves – Elas estão interligadas, mas não são a mesma coisa. Uma nação é formada pelas pessoas que compões um país. A narrativa não é do governo. Não é uma marca de governo, ‘government branding’. É a marca de uma nação, ‘nation branding’, que pertence às pessoas do lugar, e não ao governo. E os governos deveriam ter um mínimo de alinhamento ao que a marca do lugar representa, independentemente da alternância de poder, que é saudável. 

Daniel Buarque – O capítulo na nova edição do livro começa falando dos impactos da pandemia, da desterritorialização, nas comunidades imaginativas. De que forma acha que essa quarentena global afeta a comunidade imaginativa do Brasil especificamente? 

Caio Esteves – A pandemia fez com que o mundo inteiro ficasse nivelado, abrangendo todos. Não estamos em uma situação pior porque o mundo inteiro está mal. Isso dá o privilégio de partirmos de uma posição em que todos estão mal. Precisamos discutir como queremos sair dessa situação. A desterritorialização é um fato que vem acontecendo há algum tempo e que a pandemia veio acelerar. Por conta disso, é cada vez mais importante ter identidade. Quando não houver mais território, o que vai sobrar é a percepção com base na identidade, na narrativa e na vocação dos lugares. Os países que têm uma ideia forte, que por sua vez geram uma narrativa forte, e uma percepção forte vão sofrer muito menos com a desterritorialização do que os países que precisam necessariamente do lugar físico para resolver isso. Estamos caminhando para uma situação na qual vamos vamos precisar de muito mais do que nossas belezas naturais, por exemplo, para atrair turistas, investimento, talento. O que está acontecendo no país agora vai impactar no futuro dele.