O governo de Jair Bolsonaro sofreu um revés político tão violento com a vitória de Joe Biden na eleição presidencial dos Estados Unidos, que parece estar de luto.
A tensão gerada no Brasil pelas eleições nos Estados Unidos mostram que é preciso desenvolver uma relação diferente com o país e o resto do mundo. Uma posição de maior autonomia e independência permitiria ao Brasil não depender tanto do que decidem os cidadãos em outro país.
Comentário do quadro A Cara do Brasil, da rádio CBN, em 02 de agosto de 2020, tratou da situação científica mundial no atual momento de pandemia. A integração de esforços acelera a descoberta de uma vacina contra a Covid-19. em contraste à ação dos EUA, que tenta comprar estoques inteiros de vacinas, Daniel cita o ideal colaborativo entre os cientistas.
Comentário no quadro A Cara do Brasil, da rádio CBN, em 19 de julho de 2020 tratou da queda da popularidade de Donald Trump, que pode ser ruim para o governo Bolsonaro. A ascensão de Joe Biden em pesquisas de intenção de voto ligou o alerta para a diplomacia do Brasil.
O Brasil nunca foi exatamente uma potência hegemônica na América Latina. Por mais que seja reconhecidamente o maior, mais forte e mais rico da região, o país sempre teve uma relação complicada com o resto do continente, exercendo o que poderia no máximo ser chamado de liderança tênue, pouco significativa. Nada disso se compara ao momento atual, entretanto, quando a propagação do novo coronavírus na maior nação latino-americana faz com que o Brasil seja visto por seus vizinhos como uma ameaça à saúde pública regional. O Brasil virou “o doente da América Latina”.
A descrição surge de uma analogia à expressão “the sick man of Europe”, tradicionalmente usada desde o século XIX para se referir a países da região que enfrentam graves crises econômicas. Em meio a uma pandemia, a ideia de “doente” ganha novos significados, e passa a representar uma nação que realmente enfrenta problemas de saúde… E que pode contaminar seus vizinhos.
Isso fica evidente na crescente cobertura que a imprensa estrangeira tem feito sobre os riscos que a falta de controle do vírus no Brasil representam para a região.
Segundo a Associated Press, “o aumento praticamente descontrolado de casos de Covid-19 no Brasil está gerando medo de que trabalhadores da construção civil, caminhoneiros e turistas do maior país da América Latina espalhem a doença para os países vizinhos que estão fazendo um trabalho melhor no controle do coronavírus”.
Uma reportagem publicada pela BBC News Brasil resumiu assim a situação: “Com mais de 11 mil mortes por coronavírus e a maior taxa de letalidade por covid-19 na América do Sul, o Brasil virou motivo de grande preocupação e temor nos países vizinhos — levando aliados do presidente Jair Bolsonaro a colocar a afinidade política de lado e adversários na região a intensificar suas críticas ao líder brasileiro.”
A resposta frágil do governo brasileiro à pandemia e o aumento exponencial do número de vítimas no país ameaçam enfraquecer ainda mais os laços do Brasil com a região.
Este novo (pior) status do Brasil na região tende a ser problemático para negociações futuras e para a tentativa de integrar a América Latina e tentar ser o líder dessa parte do continente (o que traria mais status global). Ainda assim, como mencionado no início deste artigo, não significa que o Brasil já tenha tido algum tipo de hegemonia regional.
Parte disso vem de uma questão de identidade. Como o acadêmico britânico Leslie Bethell defendeu em um importante artigo de 2010, historicamente, o Brasil nunca foi considerado parte da América Latina –nem pelas elites brasileiras nem pelas elites do resto da região. E foi só depois do fim da Guerra Fria que ele começou a tentar ter um maior engajamento com o continente.
Bethell (que foi meu professor no King’s College London durante o mestrado) alega que intelectuais brasileiros tinham consciência do passado comum com o restante do continente, mas se viam separados pela geografia, pela história, pela economia, pela formação da sociedade e especialmente pelo idioma, pela cultura e pelas instituições políticas. Este distanciamento, portanto, pode ter dificultado na construção de uma liderança regional pelo Brasil.
Outra parte da dificuldade em assumir a liderança na região vem de uma postura historicamente complicada do Brasil em relação aos vizinhos. Desde pelo menos o início do século XIX, o Brasil assumiu uma postura de superioridade em relação ao restante da região, o que só ganhou força depois da independência.
Segundo Ron Seckinger, Dom Pedro I e os brasileiros acreditavam que o “Império” seria uma potência proeminente na região e tentavam projetar desde então uma imagem nacional de superioridade do Brasil por conta das suas instituições monárquicas, seu território, sua população e seus recursos naturais.
Outro forte argumento sobre a dificuldade em ser a principal potência regional foi apresentado no ano seguinte pelo pesquisador argentino Andrès Malamud em um artigo acadêmico. Segundo ele, uma forte divergência entre as performances do Brasil em escala regional e global faziam com que o país se consolidasse na América Latina como “um líder sem seguidores”.
Uma evidência disso é que os países da região não assumiram uma postura de defesa do Brasil em sua tentativa de assumir papéis importantes em instituições internacionais. Este é o caso, por exemplo do fracasso da tentativa brasileira de tornar o país um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (CSNU).
Não faltam evidências históricas e políticas dessa relação problemática do Brasil com a América Latina, portanto. Mas o fato de não ser reconhecido como líder não siginificava uma preocupação direta com a relação com o Brasil. O comportamento pacífico do país desde a Guerra do Paraguai pode ter ajudado a fazer com que o país não fosse visto como uma ameaça à segurança da região.
A ideia de ameaça aparece agora, entretanto, em meio à pandemia, com o alerta em relação a um possível risco do país à saúde dos vizinhos. Incapaz de combater o novo coronavírus e de proteger sua própria população, o Brasil ganha uma imagem mais negativa, de “doente” na região.
A diplomacia brasileira é mundialmente reconhecida pela busca do diálogo e do consenso, mas o que vem sendo praticado pela atual gestão é o oposto disso. A chamada ‘política do confronto’ é um rompimento com a história, vai contra a Constituição e foi alvo de críticas em artigo assinado por ex-chanceleres de todas as ideologias e pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Enquanto o foco da reportagem ficou sobre os assuntos obviamente importantes no momento, como a geopolítica global e as relações entre os dois países, foi possível entender melhor como a China vê o Brasil de Jair Bolsonaro –tema que é central para a minha pesquisa acadêmica sobre percepções externas a respeito do Brasil.
O Brasil é um país pouco conhecido na China, e o governo atual é visto como uma cópia do que Donald Trump faz nos Estados Unidos, mas com menos seriedade.
Selecionei abaixo alguns trechos da entrevista com os três em que falam mais especificamente sobre esta questão da percepção chinesa a respeito do Brasil.
Júlia Rosa – Na época das eleições surgiu a repetição do discurso do ‘Trump dos trópicos’, mas se a China é pouco conhecida no Brasil pelo cidadão médio, o Brasil é igualmente pouco conhecido na China. Os dois países se baseiam muito nos estereótipos existentes e existe muito ainda a ser percorrido no âmbito de conhecimento de história, política e cultura chinesa –e brasileira, lá. No âmbito de estudos China-América Latina, houve uma preocupação com possível hostilidade do governo, já que o Brasil é um parceiro comercial importante e uma porta de entrada para a região como um todo. Acredito que a tranquilidade ao governo chinês se deu pela antiga e consolidada relação com o agronegócio brasileiro, que tem grande influência no Congresso e no Planalto.
Jordy Pasa – Por trás das hostilidades entre chineses e estadunidenses há um contexto maior de disputa por hegemonia global, seja ela militar, econômica ou tecnológica, que obviamente não existe quando olhamos para o caso brasileiro. Não somos lidos com o mesmo nível de seriedade por Pequim, o que, a depender da situação, pode funcionar contra ou a nosso favor. Por um lado, retaliações mais graves são pouco prováveis, se engajar em um conflito com o Brasil está muito longe do radar chinês. Por outro, somos alvos mais vulneráveis, e logo menos capazes de se defender caso o atual desconforto entre os dois países se agrave.
Lívia Machado Costa – O atual posicionamento diplomático brasileiro em relação à China tem sido, por ora, subserviente à postura dos Estados Unidos, ou seja, instável e aquém do histórico positivo das relações sino-brasileiras e do potencial do Brasil no Sul global. No entanto, em parte devido a essa mudança de trajetória, há uma ascensão da paradiplomacia brasileira em campo, com governos estaduais abrindo escritórios comerciais em cidades estratégicas na China e criando trocas mais positivas entre as duas nações.
Júlia Rosa – Acho fascinante como há uma construção de linguagem e resposta igual à de Trump e apoiadores. As frases, os memes e até as hashtags muitas vezes são apenas versões traduzidas do que já estava circulando na internet estadunidense. É um reflexo muito significativo do nosso alinhamento ideológico enquanto governo e de certos grupos da sociedade.
Lívia Machado Costa – É alarmante que um país como o Brasil esteja fazendo declarações desse nível à China, e o corpo diplomático chinês tem sido vocal em relação a isso. Contudo, a postura brasileira parece ser recebida como uma falta de agenda própria em relação à China, e mais como um satélite dos Estados Unidos. Quem perde somos nós, abdicando por falta de assertividade de nosso potencial no Sul global e deterioramento da parceria estratégica com a China.
Pergunta – Os atritos diplomáticos entre o governo Bolsonaro e a China chegam a repercutir de alguma forma na China?
Júlia Rosa – Não de forma significativa ou para além do corpo diplomático ou governamental. Primeiro que o país ainda está muito centrado em si e na sua recuperação, luto e toda a bagagem que veio desses dois últimos meses. Em segundo lugar, o discurso do deputado e esses atritos são um “copia e cola” do que está sendo dito por Trump e seus apoiadores. No fim das contas, as reações acabam sendo direcionadas ao governo estadunidense. Nesse quesito, a repercussão é majoritariamente negativa. A diferença é que os EUA é um parceiro muito mais importante para a China do que o Brasil. Então, por enquanto estamos dando sorte que não somos tão populares.
Lívia Machado Costa –Os atritos não ganham força entre o público chinês, apesar de as recentes declarações do ministro Weintraub terem sido tratadas pela mídia chinesa. Na internet chinesa, as menções ao Brasil estão mais relacionadas à resposta ao Covid-19, com destaque às assimetrias entre governos estaduais e federal e as declarações de Bolsonaro dizendo se tratar apenas de uma “gripezinha”. O “Trump dos trópicos” como Bolsonaro é descrito na China, tem sido mencionado como um agente passivo durante a pandemia. Surpreende o público chinês um chefe de Estado não tratar a emergência do Covid-19 com maior assertividade.